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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Deixar o carro em Valets, em São Paulo, pura adrenalina!

Na cidade de São Paulo, valets crescem em números exorbitantes diariamente. O problema vem desde a gestão de Celso Pitta (que Deus o tenha em bom lugar, se é que ele subiu). O prefeito Gilberto Kassab (DEM) já foi questionado sobre os problemas dos quiosques de estacionamentos espalhados pela capital e, cada vez que é indagado, responde que a fiscalização existe e que quem descumprir regras e leis será punido e terá o alvará cassado. Alvará? Quem disse que todos tem permissão ou, pelo menos, a maioria, para operar este tipo de serviço na maior cidade do país? Estima-se a existência de 25 mil manobristas e 600 empresas de valet na cidade, 70% delas em situação irregular.
Em uma reportagem brilhante, com flagrantes registrados em vídeo, áudio e fotografias, a Revista Época São Paulo denunciou uma gama enorme de irregularidades que não podem ser consideradas "tristes coincidências" ou obras do acaso.
Foram testados 31 serviços de valets em restaurantes, bares "da moda" e baladas. Rastreadores, câmeras escondidas e os olhares atentos da equipe de reportagem confirmaram: em 16 deles, a lista de infrações inclui estacionamento na rua, condução em alta velocidade, não uso do cinto de segurançadesrespeito à sinalização como, por exemplo, semáforo vermelho, e até uma calota amassada por imprudência do manobrista. Isso sem contar os que roubam chicletes, contam os trocados deixados no console, folheiam a revista do cliente e bebem a água mineral do proprietário do veículo.
Vamos começar pela Vila Madalena, bairro paulistano que há mais de uma década é frequentado por diversas "tribos" em razão da diversidade de baladas oferecidas. No bar Astor, que fica na rua Delfina:163, muitos carros ficam mais de 20 minutos estacionados diante do estabelecimento antes de seguirem para a garagem. Alguns em fila dupla e com as chaves no pára-brisas. “Vou cuidar de seu carro como a senhorita cuidaria”, foi o que disse o prestativo rapaz que abriu a porta para a repórter Nathalia Ziemkiewicz, numa noite de quarta-feira, 20hs. Este mesmo simpático rapaz não colocou o cinto de segurança, não parou em um semáforo vermelho, surrupiou duas balinhas que estavam no painel e, ao chegar no estacionamento, sim - desta vez o carro não ficou abandonado numa rua próxima ao bar; o manobrista resolveu dar uma espiadinha em uma revista masculina deixada no veículo propositadamente. Até comentou com outro funcionário do estacionamento sobre a possibilidade de a proprietária do automóvel ser lésbica.
Além da equipe de reportagem, a operação envolveu críticos como Bruno Leuzinger, de bares; Flávia Pinho, de restaurantes; e Marcus Vinícius Brasil, de baladas. Parte dos 16 locais que apresentaram irregularidades recebeu mais de uma visita. O bar Astor foi um deles. Naquela quarta-feira, o carro foi logo conduzido ao estacionamento conveniado com capacidade para 80 veículos – onde o coordenador da empresa Quick Park afirmou guardar pelo menos 150.
Outros bares da região, como o Pé de Manga, rua Arapiraca: 152, lançavam mão do mesmo expediente. Por R$ 15, o veículo ficou 25 minutos em fila dupla, colaborando para o trânsito caótico de São Paulo. “Como proprietário e como cliente de outras casas, não fico 100% surpreso”, afirmou Bruno Grinberg, sócio do Astor, reconhecendo o longo caminho que falta trilhar até a completa moralização do serviço na cidade. O diretor da Quick Park, Michael Hsui, justifica: “Mesmo com uma equipe grande, fica difícil nos horários de pico”.
De janeiro de 2009 a outubro de 2010, 111 empresas de valet foram multadas em São Paulo. Transformar a rua em estacionamento pago é apenas uma das irregularidades previstas na lei 13.763/04. Fiscalizar é atribuição das 31 subprefeituras e o valor da multa, de R$ 5 mil, dobra quando há reincidência. Na capital, estima-se a existência de 600 empresas de valet e 25 mil manobristas – profissionais que, no conjunto, dirigem em média 2 milhões de veículos por mês. Segundo a Associação das Empresas de Valet de São Paulo, mais de 70% do mercado é formado por empresas irregulares. “Como muitas repassam parte do que arrecadam aos donos dos restaurantes, a maioria deles fecha os olhos à burocracia”, diz o diretor jurídico da entidade, Syrius Lotti.
Naquela mesma quarta-feira, no bar Filial, na Rua Fidalga: 254, ainda na Vila Madalena; ao deixar o carro, Nathalia estranhou quando o manobrista da Villa’s Park dobrou a esquina, afastando-se do estacionamento conveniado, localizado na mesma quadra – onde ainda havia espaço de sobra; para estacionar o Corsa a 100 metros dali, na vaga recuada de um consultório odontológico na Rua Aspicuelta. Pouco depois, cedeu lugar a um Corolla e desceu ao nível da rua, bem em frente à guia rebaixada da entrada de uma garagem. Arnaldo Altman, sócio do Filial, afirma que nunca um cliente foi prejudicado. “Às vezes, é necessário parar na rua por alguns minutos enquanto se aguarda a acomodação de outros carros”, diz. O rastreador calculou 41 minutos ali, ao custo de R$14.
Há quem admita – e até defenda – a prática de parar na rua. “Muitos clientes preferem quando deixamos o carro aqui em frente”, afirma Arcadio Martinez, sócio do restaurante Eñe, localizado na rua Drº Mário Ferraz: 213, no Itaim. “Além de ficar sob a vigilância dos manobristas, reduz a espera na saída.” Para Bruno Fattori, do Le Manjue Bistrô, instalado na rua Domingos Fernandes: 608, na Vila Nova Conceição, onde no carro da reportagem também ficou na rua; a justificativa para esse procedimento é a ausência de estacionamentos abertos à noite no bairro. Os R$15 cobrados, segundo ele, pagam seguranças à paisana que rondam a região.
O primeiro traço de indignação com o relato da reportagem partiu de Paulo Contarini, gerente do Magari, um dos sofisticados restaurantes da rua Amauri, situado no nº234, no Jardim Europa. Ao saber que manobristas da EstaSampa haviam sido flagrados estacionando em vagas de zona azul (sem cartão) e dirigindo em marcha a ré por até 50 metros, ele admitiu não ter controle sobre os motoristas. “Mas é indesculpável, porque pagamos duas garagens com seguro”, afirmou Contarini.
O restaurante Parigi, que fica na mesma rua do Magari, no nº275, e pertence à família Fasano; também colabora para o caos nas imediações. Só em 2009, 623 carros foram autuados na Rua Amauri. Segundo uma agente da CET, o trânsito causado pelos funcionários que deixam veículos em frente aos restaurantes, em local proibido, reverbera na avenida Faria Lima. “Os clientes desembarcam e eles só tiram o carro quando me aproximo com o talão de multa”, diz ela.
Na terça-feira em que a reportagem esteve no local, a agente da CET multou a Land Rover do economista Eliot Cohen em frente ao Magari, onde o valet custa R$15. Uma hora depois, um manobrista trouxe o carro e, discretamente, retirou a notificação do pára-brisas antes de entregá-lo. Avisado da multa pela reportagem, Cohen contou que é a quarta vez que isso acontece com ele na mesma rua. Amigo dos donos de alguns restaurantes dali, o economista diz que foi ressarcido nas outras ocasiões. “Eles reembolsam o dinheiro e transferem os pontos sem maiores transtornos”, afirmou. Questionada, a EstaSampa prometeu averiguar as acusações. Na segunda visita ao Magari, o carro foi para um estacionamento. O único desfalque foram alguns goles de água mineral subtraídos de uma garrafa exposta no interior do carro (confira as imagens no vídeo).
SOM NA CAIXA E VELOCIDADE
Acredite: o atrevimento de alguns manobristas extrapola, em muito, as infrações de trânsito. Na rua Joaquim Antunes, Pinheiros, uma breve amostra do comportamento de um funcionário da Biel Park, empresa que atende a quatro restaurantes vizinhos: Filipa, Maní, Ollea e Ravioli. A reportagem chegou, às 14hs, com um Honda CRV. Sem saber que estava sendo gravado, o manobrista mudou a sintonia do dial do rádio, aumentou o volume, atingiu 80 quilômetros por hora em uma rua residencial e trafegou pelo corredor de ônibus da avenida Rebouças até fechar abruptamente os carros que circulavam nas outras faixas para entrar no estacionamento. “Já avisei a associação do bairro que estou disposto a patrocinar a instalação de lombadas”, disse Fábio Ferraro, dono da empresa, alegando que é previsível que um rapaz com escolaridade e salário baixos abuse da velocidade ao dirigir um carrão importado.
Apesar de Ferraro afirmar que a Biel Park tem 220 vagas reservadas em três estacionamentos, alguns veículos seguidos pela reportagem foram deixados nas ruas Saquarembó e Santa Cristina. O patrão desconversa: “Esses carros são de empregados dos restaurantes; nós apenas fazemos o favor de estacionar para eles”. Perto dali, a rua Sampaio Vidal é diariamente dominada pelos funcionários de outra empresa, contratada pelos restaurantes Mercearia do Conde e Pote do Rei. A Fundação Procon explica que as prestadoras de serviço respondem por tudo que acontecer com o veículo – multas, furtos, avarias – e que o estabelecimento é corresponsável, uma vez que a mordomia ajuda a atrair clientes e lucro. Ambos podem ser acionados pelo usuário que se sentir lesado. Tanto o serviço de valet quanto o restaurante atendido por ele podem ser cobrados na justiça em caso de furto ou avaria. Geralmente ninguém se preocupa em saber quem acionar nessas horas.
Mas quem visitar o Maevva, rua Profº Atílio Inoccenti: 376, no Itaim; talvez vá precisar se preocupar com possíveis avarias em seu automóvel. O veículo da reportagem foi deixado com o manobrista da Fast Park às 23h30 de uma quarta-feira. No recibo, além da informação do valor a ser pago (R$18), há também a seguinte inscrição: “Não aceitamos reclamações após a entrega do veículo”. Primeiro, o Corsa foi deixado na Rua Atílio Innocenti, entre duas placas de proibido estacionar. Dez minutos depois, o motorista o conduziu bruscamente por ruas estreitas à procura de uma vaga. Ao topar com uma moradora que manobrava para guardar o carro, subiu na calçada com a intenção de desviar dela e danificou uma calota e a roda. “Quase sempre vou dormir ao som de pneus cantando”, diz o morador Mário Parillo Neto. “Isso quando não saio de madrugada e deparo com um carro fechando minha garagem”. Finalmente o Corsa foi estacionado em uma vaga marcada por um cone. Mais tarde, ao receber a reclamação sobre a avaria causada no veículo, o gerente, que identificou-se apenas como "Fábio", afirmou que o veículo já estava com a calota e roda quebradas quando fora deixado em um "estacionamento". Ah vá...
NEM DE GRAÇA!
Segundo o advogado Arthur Rollo, o Código de Defesa do Consumidor estende à empresa o ônus da prova. “Quando o cliente não consegue provar que o dano ocorreu ali, cabe ao manobrista mostrar que não foi”, diz. Ainda que o serviço seja cortesia, é possível acionar o Procon e entrar com uma ação na Justiça. O entendimento é que o valor do valet está embutido nos preços do cardápio, de modo que o estabelecimento fica sujeito à mesma lei que proíbe o uso do espaço público. No Figueira Rubaiyat, sofisticado restaurante no Jardim Paulista, rua Haddock Lobo: 1738, onde o serviço é “gratuito”; o cliente é induzido a acreditar que o carro irá para um estacionamento na Rua Estados Unidos, mas o manobrista preferiu parar em frente ao restaurante. Apenas atravessou a rua.
Depois de beberem água, roubarem meia dúzia de balas, estourarem uma calota e amassarem uma roda, ultrapassar dois semáforos vermelhos, estacionarem em guias rebaixadas e em locais proibidos; só faltava a reportagem encontrar um valet clandestino. Mas lá estava ele, na rua Joaquim Távora nº1235, na Vila Mariana, onde um grupo de amigos abriu um guarda-sol em frente a um imóvel desocupado que fica ao lado do restaurante Daisho Sushi, pintou “estacione a R$10” em uma placa e improvisou um porta-chaves. “O estacionamento é joia”, prometeram antes de deixarem o carro em uma vaga na rua França Pinto. “Isso é estelionato”, diz Arthur Rollo. O restaurante alega não estar atrelado ao serviço e colocou uma placa avisando os clientes. A subprefeitura promete para breve uma blitz no local.
BOA NOTÍCIA
Nesta reportagem investigativa, a boa notícia fica por conta do fato de nenhum dos manobristas ser fumante pois o maço de cigarros, disposto no painel do veículo, permaneceu intacto em todas as ocorrências relatadas, como mostra o vídeo.
PROMESSAS
Aliás, foi o que mais se ouviu na conclusão da matéria. Sócio do Maevva, Daniel Nagao diz que vai rescindir o contrato com a Fast Park. Os restaurantes Magari e Figueira Rubaiyat se comprometeram a regularizar a situação. O dono do Le Manjue espera estabelecer parceria com uma escola para estacionar ali durante a noite. E o Astor, aquele do rapaz que prometeu cuidar muito bem do carro, avisa que continuará realizando cursos de reciclagem para os manobristas.
Oferecer o serviço como cortesia não tira do ponto comercial a obrigação de guardar os veículos em local seguro e particular.
O QUE É EXIGIDO
• As empresas têm de oferecer local adequado e seguro. Terrenos e postos de gasolina são aceitos, desde que haja um engenheiro responsável;
• Os carros devem ter cobertura contra incêndio, furto, roubo e colisão;
• O ponto precisa destacar o preço, o local do estacionamento, o total de vagas, o valor do seguro e o número do Termo de Permissão de Uso;
• A comanda entregue ao cliente deve incluir nome e CNPJ da empresa, dia e hora de entrada, modelo e placa do veículo, endereço do estacionamento e uma frase com a qual a empresa assume sua responsabilidade por eventuais danos.
O QUE É PROIBIDO
• Usar a via pública como estacionamento ;
• Guardar vagas com cones ou outro material.
COMO RECORRER
Multa: é possível entrar com recurso no Departamento de Operação do Sistema Viário;
Furto de objetos e avarias no veículo: reclame ao gerente, anote contatos de testemunhas e registre um boletim de ocorrência. Em seguida, peça indenização no Juizado Especial Cível;
Em todos os casos: impetrar ação no Procon apenas relatando o ocorrido. Guarde o recibo do valet ou a nota fiscal do estabelecimento.
Colaboraram:
Car System, Revista Auto Esporte, Honda Motors, Osvaldo e Elieser (motoristas Editora Globo)
Fotógrafos: Fernando Donasci e Leandro Moraes
Reportagem: Nathalia Ziemkiewicz
Fotos: Apart Studio - 05/11/2010
Edição de Vídeo: Cristiano Stanisci Gomes